TEXTO ARTIGO DE OPINIÃO
Corrupção cultural ou organizada?
Renato Janine Ribeiro
Precisamos evitar que a necessária
indignação com as microcorrupções "culturais" nos leve a ignorar a
grande corrupção.
Ficamos muito atentos, nos últimos anos, a um
tipo de corrupção que é muito frequente em nossa sociedade: o pequeno ato, que
muitos praticam, de pedir um favor, corromper um guarda ou, mesmo, violar a lei
e o bem comum para obter uma vantagem pessoal. Foi e é importante prestar
atenção a essa responsabilidade que temos, quase todos, pela corrupção política
- por sinal, praticada por gente eleita por nós.
Esclareço que, por corrupção, não
entendo sua definição legal, mas ética. Corrupção é o que existe de mais
antirrepublicano, isto é, mais contrário ao bem comum e à coisa pública. Por
isso, pertence à mesma família que trafegar pelo acostamento, furar a fila,
passar na frente dos outros. Às vezes é proibida por lei, outras, não.
Mas, aqui, o que conta é seu lado
ético, não legal. Deputados brasileiros e britânicos fizeram despesas legais,
mas não éticas. É desse universo que trato. O problema é que a corrupção
"cultural", pequena, disseminada - que mencionei acima - não é a única
que existe. Aliás, sua existência nos poderes públicos tem sido devassada por
inúmeras iniciativas da sociedade, do Ministério Público, da Controladoria
Geral da União (órgão do Executivo) e do Tribunal de Contas da União (que serve
ao Legislativo).
Chamei-a de "corrupção
cultural" pois expressa uma cultura forte em nosso país, que é a busca do
privilégio pessoal somada a uma relação com o outro permeada pelo favor. É,
sim, antirrepublicana. Dissolve ou impede a criação de laços importantes. Mas não
faz sistema, não faz estrutura.
Porque há outra corrupção que,
essa, sim, organiza-se sob a forma de complô para pilhar os cofres públicos - e
mal deixa rastros. A corrupção "cultural" é visível para qualquer um.
Suas pegadas são evidentes. Bastou colocar as contas do governo na internet
para saltarem aos olhos vários gastos indevidos, os quais a mídia apontou no
ano passado.
Mas nem a tapioca de R$ 8 de um
ministro nem o apartamento de um reitor - gastos não republicanos - montam um
complô. Não fazem parte de um sistema que vise a desviar vultosas somas dos
cofres públicos. Quem desvia essas grandes somas não aparece, a não ser depois
de investigações demoradas, que requerem talentos bem aprimorados - da polícia,
de auditores de crimes financeiros ou mesmo de jornalistas muito
especializados.
O problema é que, ao darmos tanta
atenção ao que é fácil de enxergar (a corrupção "cultural"), acabamos
esquecendo a enorme dimensão da corrupção estrutural, estruturada ou, como eu a
chamaria, organizada.
Ora, podemos ter certeza de
uma coisa: um grande corrupto não usa cartão corporativo nem gasta dinheiro da
Câmara com a faxineira. Para que vai se expor com migalhas? Ele ataca somas
enormes. E só pode ser pego com dificuldade.
Se lembrarmos que Al Capone
acabou na cadeia por ter fraudado o Imposto de Renda, crime bem menor do que as
chacinas que promoveu, é de imaginar que um megacorrupto tome cuidado com suas
contas, com os detalhes que possam levá-lo à cadeia - e trate de esconder bem
os caminhos que levam a seus negócios.
Penso que devemos combater
os dois tipos de corrupção. A corrupção enquanto cultura nos desmoraliza como
povo. Ela nos torna "blasé". Faz-nos perder o empenho em cultivar
valores éticos. Porque a república é o regime por excelência da ética na
política: aquele que educa as pessoas para que prefiram o bem geral à vantagem
individual. Daí a importância dos exemplos, altamente pedagógicos.
Valorizar o laço social exige o
fim da corrupção cultural, e isso só se consegue pela educação. Temos de fazer
que as novas gerações sintam pela corrupção a mesma ojeriza que uma formação
ética nos faz sentir pelo crime em geral.
Mas falar só na corrupção
cultural acaba nos indignando com o pequeno criminoso e poupando o
macrocorrupto. Mesmo uma sociedade como a norte-americana, em que corromper o
fiscal da prefeitura é bem mais raro, teve há pouco um governo cujo
vice-presidente favoreceu, antieticamente, uma empresa de suas relações na
ocupação do Iraque.
A corrupção secreta e
organizada não é privilégio de país pobre, "atrasado". Porém, se
pensarmos que corrupção mata - porque desvia dinheiro de hospitais, de escolas,
da segurança -, então a mais homicida é a corrupção estruturada. Precisamos
evitar que a necessária indignação com as microcorrupções "culturais"
nos leve a ignorar a grande corrupção. É mais difícil de descobrir. Mas é ela
que mata mais gente.
Retirado
da Folha de S. Paulo, 28/6/2009. Renato Janine Ribeiro, 59, é professor titular
de ética e filosofia política do Departamento de Filosofia da USP. É autor,
entre outras obras, de República (Publifolha. Coleção Folha Explica). (Texto
retirado do material da Olimpíada de Língua Portuguesa, caderno Pontos de Vista
- 2010.)